19 de dezembro de 2011

PSICOLOGIA – VÁRIOS CAMINHOS, UM RUMO PARA A LITERATURA.

Artigo de Morgana Gazel, publicado no jornal "A TARDE", domingo, 18/12/2011, SSA/BA.

No que diz respeito à relação entre a psicologia e literatura, vale fazer referência ao trabalho de alguns freudianos e junguianos, voltado para compreensão dos prováveis efeitos da audição ou leitura de certas histórias, na psique humana. A junguiana Clarissa Pinkola Estés observou, em contos populares, o dom de tocar em algo nosso, muito íntimo; dom este que é um passo importante e necessário para o reconhecimento e a resolução de questões psicológicas. E o psicólogo Bruno Bettelheim, interpretando contos de fada à luz da psicanálise, mostrou que eles têm a possibilidade de propiciar, em crianças, elaboração de conteúdos psíquicos carregados de ansiedade.

Eu própria constatei, no comportamento de um neto, o que denominei efeito “Chapeuzinho Vermelho”. Contei-lhe essa história por vários anos, repetindo-a quantas vezes me solicitasse. Ele, uma criança desprovida de atitudes agressivas, identificava-se com o lobo mau. Algum tempo depois, passou a disputar brinquedos com outras crianças, do que antes era incapaz.

Considerando os estudos citados e minha observação particular, resolvi ler, repetidamente, romances que provocassem em mim forte reação emocional. Fazia-o até meu sentimento apaziguar-se. Obtinha então uma mudança interna sem necessariamente eu tomar consciência da causa de minha reação. Agora, tenho como hipótese que qualquer obra de ficção ou mesmo real, que relate dramas e conflitos humanos de forma honesta, ajuda a dirimir dificuldades emocionais. Levei esta estratégia de leitura repetida à clínica e venho percebendo resultados semelhantes aos meus.

Concluí, portanto, que este tipo de literatura pode ser usado como instrumento da práxis psicológica. Em qualquer das escolas. O behaviorista certamente explicará a mudança de conduta como resposta a estímulos presentes no texto; o psicanalista freudiano a interpretará como já o faz no respeitante à leitura ou audição de contos de fadas; o junguiano, que reconhece o dom dos contos populares, além da interpretação dos freudianos, talvez a considere, em alguns casos, provocada pela sintonia com algum arquétipo representado na história; o psicólogo humanista provavelmente a julgue proveniente da liberação de bloqueios ao impulso evolutivo, pela ação do conteúdo literário; o transpessoal, por sua vez, explique-a como elevação do nível da consciência por influência da leitura. Qualquer que seja a justificativa, o elemento capaz de criar a experiência transformadora está na obra literária, a técnica é da práxis científica. A arte e a ciência solidarizando-se para facilitar a vida humana.

Essa conclusão contribuiu para que me dedicasse, irremediavelmente, à atividade que venho exercendo nos últimos anos: escrever romances, poesias e contos. Espero assim elaborar novos instrumentos de mudanças, que atuem primeiro em mim ao escrever, segundo em quem os utilizar em seu proveito. Creio que, de acordo com Jung, minha alma encontrou seu significado. Mas, percebo, este significado não é estático, é um trem em movimento, que segue eternamente. 

MORGANA GAZEL / ESCRITORA E PSICÓLOGA
Autora de romances, poesias e contos.

12 de dezembro de 2011

Uma cena de desejo / do romance "Enseada do Segredo"


Terminado o serviço, sentaram-se no sofá e ficaram folheando um álbum de fotografias. Apesar de Fred esforçar-se em evitar, as mãos dos dois algumas vezes tocavam-se, o fogo agitava-se. Ao perceber um leve tremor nas mãos de Dolores, Fred levantou-se pensando em fingir que iria ao banheiro, entretanto não chegou a falar; no segundo seguinte, a garota estava de pé, tão perto, que partes salientes de seu corpo tocavam levemente nele.

— Você está sentindo o mesmo que eu? – ela sussurrou e lhe apertou a mão.

— Não sei – ele disse, a voz repentinamente rouca.

Dolores acariciou-o na face, nos lábios, o rosto dele ruborizou-se e toda a pele esquentou. O fogo espalhava-se.

— Vamos ficar juntos? – ela sussurrou novamente, como se juntos já não estivessem.

Em vez de responder, Fred enrijeceu-se, tentava controlar-se; não deveria ser injusto com Dolores, ela era sua amiga! Como conseguia pensar em dever ou justiça num momento como esse, não foi possível entender.

— Vamos – ela insistiu. – Sei que você está sentindo o mesmo que eu.

— Dolores... você precisa saber... – começou a dizer, engasgado, enquanto uma mão tocava-o na nuca e a outra escorregava pela abertura de sua camisa. Ainda assim ele continuou: – Tive uma namorada no Brasil, de quem não me desliguei totalmente.

— Não se aflija – Dolores murmurou tranquilizadora. – Você não tem de se desligar – acrescentou a olhá-lo com seu olhar molhado e... insuportável.

— Não se trata disso – Fred parecia lamentar. – É que... bem... não quero compromissos, namorar ninguém seriamente – quase venceu a luta contra o fogo.

— Não é namoro – Dolores disse baixinho, seu hálito atiçando o fogo de Fred, ela ofegava. – O que eu quero – com os olhos fixos nos dele, abria-lhe a camisa, botão a botão – é apenas – suspirou – viver isso agora. Você quer?

— Eeu... – gaguejou, envolto por labaredas vorazes que lhe afugentaram a razão. Não mais se controlou; acariciava-a quase violento e mergulhou num gozo desvairado várias vezes até extinguir o fogo.


(Trecho do "Enseada do Segredo", 1ª edição)


5 de dezembro de 2011

Sentado diante do mar... "Enseada do Segredo"

Algumas vezes, sentado diante do mar, ele esperava o sol nascer, fixava-se no nada, fixava-se em si mesmo, fixava-se naquele pedaço do oceano.

Uma vez, captou algo novo no murmúrio do mar, sua mente poliglota traduziu: “Num dia longínquo, desejei ser uma gota gigante. Comecei a penetrar nessa costa oceânica. Mas me interrompi, porque a terra era fértil, dessas que não se cansam de receber e doar.Temi me perder em seu seio, agora sou apenas uma pequena baía.” Depois desse dia, nunca mais Frederico deixou de ouvir, em certas horas, o lamento do mar, a cada onda que se dissolvia: “Devia ter arriscado. Devia ter arriscado. Devia ter arriscado...”
(Trecho do romance "Enseada do Segredo")


18 de novembro de 2011

"Enseada do Segredo" / Sinopse


Uma enseada, o trem, a igreja, cenário de segredos. Quando descobre o segredo de sua família, Fred é inundado por sentimentos com os quais não sabe lidar. Coloca em dúvida a própria identidade. Incapaz de suportar tal situação, no ambiente em que vive, abandona tudo e vai para outro país… 

Entretanto a realidade que se desvelou com a revelação do segredo acompanha-o, de modo que ele não consegue relacionar-se normalmente com outras pessoas. Todavia passa por experiências que o ajudam a amadurecer. Já acostumado à condição de estrangeiro solitário, é surpreendido por uma nova circunstância que o obriga a enfrentar íntimas verdades e voltar definitivamente para sua terra.

Essa história pode levá-lo a identificar-se com a vivência externa ou interna do protagonista. A primeira é definida por suas atitudes, a relação com a família, com os amigos e com a garota de quem ele gosta, as disputas esportivas, as festas, a estada no exterior. A segunda desenrola-se por trás da primeira e se manifesta nos sentimentos inconfessados ou incompreendidos e nos estranhos devaneios dele.

Um leitor, que aparentemente se identificou mais com a última vivência, comentou: “Fiquei fascinado com o livro, nunca tinha lido algo do gênero; um romance onde se explora questões da psicologia. Você nem imagina o quanto aprendi sobre mim lendo as aventuras de Fred.”


Caro visitante


Quero compartilhar com você um fato curioso relacionado a meu primeiro romance, o Enseada do Segredo.

Numa ocasião, cheguei à conclusão de que escrever histórias inventadas é o que mais quero fazer no curto tempo que me resta de vida, na melhor das hipóteses, trinta anos, muito pouco para quem gostaria de viver por toda a eternidade. Fiquei então aguardando uma “inspiração divina”, pois jamais escrevera ficção, minha experiência era com textos acadêmicos. No entanto não tinha muita esperança em ser atendida porque minha relação com Deus sempre foi meio problemática; não o aceito como dizem que Ele é. Por isso recorri ao Deus que eu própria inventei, naturalmente à minha semelhança, em vez de recorrer Àquele inventado pelos pregadores religiosos, à semelhança deles. Santo Deus, o meu, já me afastei do que me incitou a escrever esta nota! Voltando ao que comecei a contar, enquanto esperava a dita inspiração, lia romances com olhos de aprendiz, comprei uma nova gramática, um livro sobre comunicação, novo dicionário, tomei um curso relâmpago de escrita literária, comecei a descrever ambientes e esbocei um conto.

Dois meses passaram e nada aconteceu até que, ao me dirigir a um restaurante, de lá iria para meu consultório, minha mente foi invadida por um pensamento que se repetia sem parar: “Volte para casa”. Claro que não voltei, isto é, não voltei de imediato, pois sou uma pessoa responsável! No restaurante, o pensamento insistiu tanto que resolvi barganhar: Tudo bem, eu volto se todos os clientes estiverem absolutamente tranquilos! Telefonei e, para minha surpresa, nenhum deles fazia questão de minha companhia naquela tarde. Voltei e, ao chegar a casa, senti um sono tão danado que me joguei na cama sem sequer trocar de roupa. Acordei, à noite, com o enredo de uma história, o perfil psicológico dos personagens principais, seus nomes e os títulos dos primeiros capítulos.

Assim nasceu o romance, Enseada do Segredo. Óbvio que tenho uma explicação psicológica para isso, mas prefiro pensar que fui agraciada pelo Deus que inventei. O que você pensaria?

Ser ou não ser - eis a questão...



Ser ou não Ser - eis a questão.
Será mais nobre sofrer na alma
Pedradas e flechadas do destino feroz
Ou pegar em armas contra o mar de angústias -
E, combatendo-o dar-lhe fim? Morrer, dormir,
Só isso. E com o sono - dizem - extinguir
Dores no coração e as mil mazelas naturais
A que a carne é sujeita; eis uma consumação
Ardentemente desejável. Morrer - dormir -
Dormir! Talvez sonhar. Aí está o obstáculo!
Os sonhos que hão-de vir no sono da morte
Quando tivermos escapado ao tumulto vital
Nos obrigam a hesitar: e é essa reflexão
Que dá à desventura uma vida tão longa.(...)


In "Hamlet" (ATO III - CENA I) // William Shakespeare (1564/1616)

Século Trinta e Três


Nada de ideias rebuscadas
Nada de tempo gasto
inutilmente.  Desconsideramos
os sentimentos, o ser, o não-ser
o inapreensível, os devaneios.
A humanidade há de esquecer
filósofos, artistas, aqueles
amantes do imponderável.
A deusa Tecnologia
pés, mãos, olhos, corações
ela fabrica.
O corpo alimenta-se de pílulas.
O sexo é livre, on line
em qualquer idade.
Basta desejar.
Se enjoar
muda de internauta.
Casamentos vendidos
em sites, aos milhares.
A História dos Antigos
repousa bem guardada
no cemitério dos esquecidos.
Dos filósofos, avós da humanidade
os civilizados dizem a sorrir:
Coitados, quanta bobagem
crianças com palavras a brincar.
Heráclito?!
Entro, sim, no mesmo rio.
Antes de dois mil
o Brasil descobriu:
“É proibido proibir.”
Sócrates, o inquiridor,
“Conhece-te a ti...”
Parece nunca ter visto
a si mesmo num espelho!
Conhecer mais o quê?
Sabemos tudo da célula
do mundo dentro do átomo
e do que, fora dele, se expande.
O universo é finito ou infinito?
Eis a questão que persiste.
A velhice há muito não existe
os cansados da vida tomam pílulas
e vão servir de adubo em jardim.
O corpo é o templo do prazer
rostos belos, cópias de modelos.
Peles sensíveis a estímulos
oriundos de qualquer parte
do planeta-rede on line.
Eros habita a imagem.
Até casais que moram juntos
na tela vão buscar orgasmos.
Deleitam-nos também as artes
música, cinema, teatro, literatura.
Cito o poema que mais me apraz:
“Ah, o sol!
Raios dourados
perfuram o azul.”
Os romances, os longos,
chegam a dez telas-páginas!
Um trecho do último que li
meu cérebro gravou:
“O herói olha pasmo. Seu pênis
pequeno, encolhido. Firma-se.
Diante da musa. Ela não o vê.
Canta. Enquanto usa o vibrador.”
 Não valorizamos a sintaxe
construímos conceitos isolados.
Nossa mente apreende-os
sem operações complicadas.
Assim o cansaço é tão mínimo
não atrapalha as tarefas diárias.
Falo dos Nobres
não dos Impedidos
executores de atividades
que as máquinas não fazem.
Estes às artes não se dedicam,
atendem felizes nossos caprichos.
À noite recolhem-se em vilas
suas casas idênticas em círculos.
A chave é o código de identidade
sob a pele de quem ali reside.
Eles também usam pílulas!
Não temos doenças d’alma ou stress
dos quais tanto sofriam os Antigos.
Nenhum de nós grita de entusiasmo
nem chora as perdas necessárias.
Não há destino difuso nem metas
a ocupação é determinada
segundo as habilidades.
Só uma coisa é proibida:
A leitura das obras dos Antigos.
Salvo aos bibliotecários
- sou um deles -
e aos analistas das comunidades.
Nosso mundo é mais que perfeito!
Esta lágrima no teclado
veio de um olho irritado.
Vou tomar a pílula de dormir
amanhã estará recuperado.


Morgana Gazel



15 de novembro de 2011

"Uma questão tão simples"




Raios de lua não te trazem a mim,
as ondas do mar não dizem teu nome.
Procuro tua palavra, o verbo
com que materializaste o mundo.
No deserto do meu querer
o vento não me responde,
a flor emudece ao me ver.
Procurando-te manchei as estrelas
com o sangue de meus pés peregrinos.
Mergulhei em buracos escuros,
pesados, sem fim, sem tamanho.
Vaguei, minha alma dorida, exangue.
Deus onde te escondes?
Por que te fazes tão difícil de ser,
impossível de abandonar?
Ateus te projetam em si
ou na matéria universal,
crentes em misteriosas figuras
ou no poder que vislumbram
em ti e querem alcançar.
Estás em tudo e em nada
mas a mim não respondes
uma questão para ti tão simples:
Como curar a dor de todas as eras
que dilacera a humanidade?

Morgana Gazel

13 de novembro de 2011

Mensagem para meus leitores.


“Ignorar não é não saber; há um saber além do conhecimento obtido através da razão.”


Esta proposição aparece antes da primeira etapa do livro Enseada do Segredo para chamar a atenção acerca dos devaneios, sentimentos e sonhos do protagonista, que sinalizam seu conhecimento inconsciente de um fato que lhe fora negado, tornando-se o segredo familiar. No mais profundo de si mesmo, este personagem sabe desse fato, apesar de ignorá-lo (nesta acepção, ignorar é não estar consciente).

A história desenrola-se de modo que ele se antecipa e declara o que estava preste a ouvir de quem cuidou todo o tempo em manter o segredo. Episódios como esse ocorrem com frequência em nosso dia a dia, mas não lhe damos importância, não nos perguntamos como “adivinhamos”. Na verdade, não adivinhamos coisa alguma, o que ocorre é que apreendemos informações diversas sem que percebamos e aquelas que nos dizem respeito tentam vir à consciência de várias maneiras; através de problemas físicos, condutas inadequadas, sonhos, devaneios ou sentimentos incompreensíveis. Assim a mente fala exigindo atenção. Se a atendemos, temos a chance de nos transformarmos em pessoas mais capazes de enfrentar os desafios da vida, caso contrário tornamo-nos vítimas de nós mesmos.

Morgana Gazel



8 de novembro de 2011

Fernando Pessoa



"Posso ter defeitos, viver ansioso e ficar irritado algumas vezes,
mas não esqueço de que minha vida é a maior empresa do mundo.
E que posso evitar que ela vá a falência.
Ser feliz é reconhecer que vale a pena viver apesar de todos
os desafios, incompreensões e períodos de crise.
Ser feliz é deixar de ser vítima dos problemas e
se tornar um autor da própria história.
É atravessar desertos fora de si, mas ser capaz de
encontrar um oásis no recôndito da sua alma .
É agradecer a Deus a cada manhã pelo milagre da vida.
Ser feliz é não ter medo dos próprios sentimentos...
É saber falar de si mesmo.
É ter coragem para ouvir um 'não'.
É ter segurança para receber uma crítica, mesmo que injusta.

Pedras no caminho?
Guardo todas, um dia vou construir um castelo..."

(Fernando Pessoa)



6 de novembro de 2011

Pensamento do romance LIBERDADE NEGADA

                                                                Ilustração de Slawec Gruca

5 de novembro de 2011

LÁGRIMA


Mancha redonda 
no papel
transparência líquida.
No olho quente
esperança de alvíssaras. 
Dor da alma esquecida.
Lágrima do coração vazio
ou compadecido.
Aquela misturada com um sorriso
diante do afago imprevisto
da beleza indescritível
do incognoscível
da saudade antecipada 
na hora da partida
do desafogo de quem chega
e de quem aguarda.
Lágrima de criança sem amor
da velhice desesperançada 
do fogo da paixão 
que transborda em água.
Lágrima, sereno que apazigua
quem se rendeu à vida. 


Morgana Gazel

ATRAÇÃO


Ilustração de Cláudia Navarro



Uma força indômita
que nos une e afasta 
apresenta-se envolta 
em luz fosforizada
ou fiapos de sombra
ora luz ora sombra.
A incerteza recolhe o olhar
foge temerosa a razão 
gritam os corpos 
vassalos esfomeados
submissos à paixão.
Brinca o demônio, aposta 
num jogo de dados.
Se par, a luz engana
Se impar, o escuro amedronta. 
Enquanto desesperançados
nossos corações sangram. 


Morgana Gazel