11 de março de 2012

“O poder de transformação da literatura” - publicado no jornal A TARDE, em 25/03 e 01/04 de 2012, com o título "Literatura e Subjetividade"



O poder de transformação da literatura tem antecedentes históricos. Há muitos anos a psicologia se interessa por esse tema. Uma psicóloga junguiana, após vinte anos de pesquisa, chegou à conclusão de que os mitos, as lendas folclóricas e os contos de fadas podem afetar positivamente a mulher. A psicanálise constatou que os contos de fadas exercem efeitos benéficos na psique da criança. Nos contos de fadas tradicionais existem elementos bons e maus que fazem parte da complexa vida humana. Por isso, as crianças se identificam facilmente com os personagens e conseguem elaborar conteúdos que elas não compreendem, mas que provocam conflitos e sofrimentos internos. 

Aproveito para dizer que é uma grande bobagem modificar os contos, de modo que apresentem apenas os aspectos positivos da vida. Fazer isso torna a história bonitinha, porém falsa e, consequentemente, sem nenhum poder de transformação, porque não se pode enganar a psique. Na mente do ser humano há de tudo; o feio, o belo, o amor, o ódio, o medo, a coragem, a falsidade, a sinceridade, etc. 

Durante minha experiência, digamos assim, familiar, pude observar a veracidade do que diz a psicanálise acerca dos contos de fadas. Além disso, descobri que não é qualquer conto que provoca um efeito observável na criança e que, para que esse efeito se dê, é necessário um método. Quem me ensinou um método que se mostrou eficiente foi meu neto, sujeito espontâneo de minha experiência fortuita.

Ele era uma criança medrosa, incapaz de se defender; se outra criança mesmo menor lhe tirasse o brinquedo, ele apenas se queixava e chorava. Nessa época tinha em torno de quatro anos e era completamente dominado pela irmã, um ano mais nova. Quando estávamos juntos, antes de dormir os dois pediam que lhes contasse histórias. Certa noite, contei a história de Chapeuzinho Vermelho, meu neto ficou muito atento e pediu que a repetisse, tive de repeti-la até ele dormir. A partir desse dia, durante alguns anos, mantivemos esse procedimento; eu contava a história de Chapeuzinho até que ele dormisse. Algumas vezes, insistia em que eu cantasse a música de Chapeuzinho e ele cantava a do lobo mau. Notem isso: uma criança incapaz de brigar, de se defender, identificou-se com o lobo mau. Minha mente de psicóloga logo fez uma interpretação, mas isso não importa. O importante é que, após algum tempo, este menino começou a fazer uso da agressividade como toda a criança saudável, aprendeu a se defender e não mais se submetia às ordens da irmã.

Este episódio permitiu que eu observasse na prática que os contos de fadas são de grande valia na infância e que o conto que sensibilizar a criança pode promover a cura de seus conflitos íntimos, contanto que o adulto use o método de repetir enquanto lhe for pedido.

A percepção desse mesmo poder nos romances ocorreu algum tempo depois. Estava aparentemente bem comigo mesma, quando resolvi ler Grande Sertão – Veredas. No final da leitura, senti uma dor tão dilacerante no peito que eu não parava de chorar. Não entendia por que chorava, só chorava. Sem saber o que fazer, peguei o livro e voltei a ler. No final senti novamente a dor embora menos intensa. Segui o método do meu neto e li repetidas vezes; chegava ao final, imediatamente voltava a ler. Parei apenas quando a dor desapareceu completamente.

Haviam-se passado vários meses, quando me surpreendi enfrentando uma situação em que me senti impotente, mas daquela vez não gritei com os responsáveis, como sempre fazia. Pelo contrário, exigi meus direitos educadamente. Compreendi. A repetição da leitura libertara-me do que estava por trás de minha conduta anterior, que viera à tona diante da cena em que “vi” Riobaldo impotente diante de Diadorim já morta. (Riobaldo e Diadorim são personagens do romance Grande Sertão Veredas, de João Guimarães Rosa). 

Morgana Gazel



Nota: Esta experiência certamente foi o pilar em que me sustentei ao tomar a decisão de escrever histórias fictícias que contribuam para a transformação íntima dos leitores. E assim nasceram os romances ENSEADA DO SEGREDO e LIBERDADE NEGADA. Veja a capa de ambos na coluna à sua direita.   

3 comentários:

Eliane Accioly disse...

Morgana, que alegria encontrar você como estou encontrando, falo sua língua, tem a agressividade de vida, sem a qual, a vida não é possível. Histórias curam, com os personagens bons e maus, e para as crianças, os maus são muito interessantes, adorei seu neto deixar de "obedecer" a irmã!!!!!!!!! beijos e beijos alegres, Eliane (Accioly)

Estarei seguindo, vá aos meus blogs, alma irmã!

Mel disse...

Morgana, lendo o que escreves, sinto-me tão bem! Suas palavras deslizam carinhosamente entrando num entendimento imediato. Faz-me sentir à vontade e refletir muito sobre o que escreves. Parabéns!!!

Gilberto Oliveira disse...

Muito bom esse texto. Muito instrutivo, mesmo.