Além de contar uma boa história, seja triste ou hilária, sua trama cheia de mistério ou evidente, tenha ou não conteúdo histórico, cultural, etc., o escritor tem, entre outras, uma importante responsabilidade: cuidar do idioma.
Revendo alguns dos livros que li – D. Casmurro, de Machado de Assis, Memórias do Cárcere, de Graciliano Ramos, Grande Sertão: Veredas, de João Guimarães Rosa e Laços de Família, de Clarice Lispector –, constatei, agora com o olhar de escritora, o cuidado que estes autores dispensavam à ortografia, à sintaxe e à dimensão conceitual da escrita.
No entanto, em algumas obras atuais, observa-se uma espécie de relaxamento dos autores no que se refere a estes aspectos. Por exemplo: inserem vírgulas à vontade e em lugares inconvenientes; fazem uso de relações inadequadas entre orações principais e suas complementares; introduzem pleonasmos, cacofonias e redundâncias sem qualquer objetivo literário. Àqueles de olhar mais apurado, muitos desses erros soam como pedradas.
Alguns escritores consideram que sua função se restringe a escrever. Mas isso implica em esperar do revisor, se contratado, uma tarefa às vezes impossível: fazer a correção sem alterar a ideia intencionada, a despeito dos erros, mesmo que estes dificultem a compreensão dos trechos nos quais se encontram. É importante lembrar que todo autor tem pelo menos o objetivo de manifestar suas ideias de acordo com o que apreende da realidade tangível ou intangível. Se ele entregar a um revisor um texto cuja clareza foi prejudicada devido à má qualidade da escrita, corre o risco de publicar o avesso do que pretendia.
Estes, porém, são os menores dos prejuízos, o maior é oferecer uma leitura que ajudará no empobrecimento do idioma, consequentemente no empobrecimento da capacidade de o leitor pensar e expressar seus pensamentos e sentimentos. Ora, quem não se expressa não dialoga com o mundo, quem não pensa não consegue fazer juízo de valores. Então como tais pessoas conseguirão compreender o que são direitos e deveres? E, se não lograrem um mínimo desta compreensão, o que ocorrerá com a sociedade em que vivem? No que concerne a isto há muito a conjeturar, mas considerando apenas o que foi analisado podemos concluir: o empobrecimento do idioma contribui para dificultar a aquisição de valores necessários à condição de cidadania.
Portanto nós, escritores, temos somente duas opções: ou desenvolvemos a habilidade no uso da linguagem, de modo a assumirmos, como nos for possível, o papel de guardiões do nosso idioma; ou desprezamos esta habilidade, mas sabendo que estaremos atuando como agentes de destruição deste idioma e que seremos os responsáveis pelas consequências disso.
Morgana Gazel, autora de romances, poemas e contos.
8 comentários:
O escritor tem, entre outras, uma importante responsabilidade: cuidar do idioma.
Essa frase mostra, em poucas palavras, como foi encarado, pelos intelectuais brasileiros o ato de escrever. Grupo formado, quase que em sua maioria por membros da burguesia nacional, salvo raras exceções, os escritores brasileiros se limitaram realmente a isso: Cuidar no nosso idioma. Eu diria, do idioma deles e de sua classe social: A burguesia. A historia da evolução linguística nos mostra que o idioma, é uma ser vivo, não precisa de ninguém que o guarde, o congele. Devido a esse pensamento: Guardar nosso idioma. Temos uma gama de autores, que estão em total dissonância da poesia e da prosa internacional. Não irei muito longe, citarei apenas nomes latino-americanos: Quem temos a altura de Borges? Garcia Marques? Montoya? Joa Bastos? Cortaza?
Salvar nosso idioma...
Essa foi a desculpa usada, para perpetuar os preconceitos linguísticos durante os dois últimos séculos. Esses senhores ( as ) não respeitam as variantes de nossa língua viva. Não aceitam a liberdade de nossas dezenas de sotaques. Querem chamar por língua um amontoado de palavras esquálidas, gravadas em obras alheias a nossa realidade social. Salvar nossa língua, seria livrar o povo brasileiro destes depósitos de vocábulos, também conhecidos como, literatos burgueses.
Oi, Aparecido Galindo. Concordo com sua avaliação. Mas, neste texto, "cuidar do idioma" não significa rejeitar o novo. Significa evitar erros provocados por desatenção ou desconhecimento da linguagem, erros que dificultam a leitura e, portanto, prejudicam o leitor. Quando se comete um erro intencionalmente, ele deixa de ser erro, serve para atender o estilo ou objetivo do autor. Por exemplo, "Grande Sertão, Veredas" é um livro maravilhoso, com muitos erros ortográficos, porém todos intencionais, o autor usou-os para caracterizar o sertanejo. Considero-o o melhor entre os livros que li.
Um abraço.
Morgana, importantíssimo seu alerta!
Isso serve muito para mim. Não que despreze a relevância da gramática e afins, mas pelo fato de querer entrar no mundo literário e isso exige de mim um comprometimento maior com relação ao domínio do idioma.
Se é para se passar uma mensagem clara e coerente, nada mais natural do que sinais gráficos corretos, concordâncias, e etc em ordem. É para isso que existem as normas gramaticais, para que aquilo que é oral -inclusive no pensamento - consiga ser descrito na forma escrita de maneira "entendível".
Uma coisa aparentemente óbvia mas que está muito esquecida ou aquém da sua importância e necessidade para uma boa comunicação e entendimento.
Credito muito dessa situação, inclusive, ao pouco hábito de boas leituras e ensinos questionáveis nas escolas atuais.
Fiquei muito orgulhosa de ver que escritores comprometidos e qualificados, como você, têm a humildade em alertar aos pretensos escritores do verdadeiro sentido da escrita: passar uma mensagem e que seja entendida, onde o que o emissor diz consegue ser entendido pelo receptor como o emissor está dizendo.
Obrigada pelo alerta, pela dica, pelo lembrete!
Pat.
Adorei essa leitura!
Parabéns Morgana e muito obrigada por compartilhar tão sábias palavras!
Acho muito importante cuidarmos da nossa linguagem corretamente, porém, isso vamos desenvolvendo aos poucos, seguindo nosso próprio desenvolvimento na escrita. Entretanto, muitas vezes se nos atermos demais na perfeição de escrita, deixamos de expressar sentimentos e ideias que surgem antes mesmo delas serem "grafadas"...A preocupação com a escrita ao meu ver, deve ser posterior à ideia exposta.
Acho que o papel do revisor é fundamental no apoio a linguagem utilizada, pois muitas vezes quando escrevemos com regionalismo, algumas palavras que existem em determinadas regiões e soam como erros para quem usa o português dentro da nova ortografia, e caso não sejam usadas dentro do texto e do contexto, acabam detonando todo a obra.O alerta é ótimo, mas, não se aplica ao "pé da letra" em todos os casos.
Por exemplo, já ganhei dois concursos de contos respeitados, com o Texto "Deus visita o sertão" onde a linguagem utilizada pelo personagem principal com Deus era a linguagem popular nordestina com palavras tipo "oxi minino!" e nem por isso o texto foi desconsiderado, entendeu?
Bem importante seu alerta amiga.Quando escrevo qualquer coisa,escrevo simplesmente, depois é que me atento as correções. Não sou uma especialista, mas a medida que o tempo vai passado vou repassando os contos e vou "amadurecendo", penso eu. Beijo grande escritora.:-)
Olá, IZABELLE VALLADARES
Obrigada pelo comentário. Esclareço, porém, que este artigo se refere a erros que cometemos por descuido ou por falta de conhecimento em escrita, erros que geralmente prejudicam o entendimento do texto ou o tornam pobre. Não se refere a estilos. A linguagem regionalista em romances é um tipo de estilo. Vou repetir o que disse em comentário anterior: O livro, Grande Sertão - Veredas, que considero o melhor que li até agora, é escrito em linguagem regionalista.
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