21 de março de 2012

Um destino: A Floresta Literária


Concordo com James Hillman[i] quando diz que, assim como uma semente de carvalho está fadada a se tornar uma árvore, trazemos um destino instigado por uma vocação que devemos desenvolver. Costumo chamar essa vocação de “o desejo mais intenso que acalentamos no recôndito de nossas almas”. 

Mas, se a semente cair num terreno árido, pode não chegar à plenitude do seu destino, quiçá jamais alcançá-lo. Corremos o mesmo risco e talvez nem sequer consigamos reconhecer nosso desejo maior e mais exigente, caso sejamos submetidos a uma educação ou condições sociais alienantes. No entanto, apenas quando buscamos realizá-lo, vislumbramos o real significado da vida e os demais desejos ficam num plano secundário.

Esse fenômeno ocorre comigo desde que me conscientizei de que meu destino ou desejo mais ardente é escrever histórias fictícias que tratem de dramas humanos reais.

A partir de então, adentrei na floresta literária, procurando desvendar seus mistérios e sua arte. Não quero dar a impressão de que esta viagem seja como um passeio a Disney. Pelo contrário, é importante mostrar que temos de enfrentar muitos obstáculos, creio que necessários à aprendizagem. No meu caso, inicialmente fiquei a esperar uma “inspiração divina”, pois jamais escrevera ficção, minha experiência era com textos acadêmicos. No entanto não tinha muita esperança em ser atendida porque minha relação com Deus sempre foi meio problemática; não o aceito como dizem que Ele é. Por isso recorri ao Deus que eu própria inventei, naturalmente à minha semelhança, em vez de recorrer Àquele inventado pelos pregadores religiosos, à semelhança deles. Santo Deus, o meu, já me afastei do que me incitou a escrever esta nota! Voltando ao que comecei a contar, enquanto esperava a dita inspiração, lia romances com olhos de aprendiz, comprei uma nova gramática, um livro sobre comunicação, novo dicionário, tomei um curso relâmpago de escrita literária, comecei a descrever ambientes e esbocei um conto. 

Dois meses passaram e nada aconteceu até que um dia, ao me dirigir a um restaurante, de lá iria para meu consultório, minha mente foi invadida por um pensamento que se repetia sem parar: “Volte para casa”. Claro que não voltei, isto é, não voltei de imediato, pois sou uma pessoa responsável! No restaurante, o pensamento insistiu tanto que resolvi barganhar: “Tudo bem, volto se todos os clientes estiverem absolutamente tranquilos.” Telefonei e, para minha surpresa, nenhum deles fazia questão de minha companhia naquela tarde. Voltei. Ao chegar a casa, senti um sono tão danado que me joguei na cama sem trocar de roupa. Acordei à noite com o enredo de uma história, o perfil psicológico dos personagens principais, seus nomes e os títulos dos capítulos iniciais. 

Assim nasceu meu primeiro romance, o Enseada do Segredo. O segundo, preste a ser enviado a quem tem o destino de publicar, e o terceiro, ainda um monte de rabiscos em pedaços papel guardados, vieram a mim de forma menos inusitada. Quanto mais me embrenho na floresta literária, torna-se mais difícil sair. Acabei de organizar um livro de poesias com as flores e os espinhos colhidos ao longo dessa caminhada. Logo, estou convencida de que Hillman tem razão. 

Morgana Gazel

[i] Psicóloo Junguiano em O Código do Ser



11 de março de 2012

“O poder de transformação da literatura” - publicado no jornal A TARDE, em 25/03 e 01/04 de 2012, com o título "Literatura e Subjetividade"



O poder de transformação da literatura tem antecedentes históricos. Há muitos anos a psicologia se interessa por esse tema. Uma psicóloga junguiana, após vinte anos de pesquisa, chegou à conclusão de que os mitos, as lendas folclóricas e os contos de fadas podem afetar positivamente a mulher. A psicanálise constatou que os contos de fadas exercem efeitos benéficos na psique da criança. Nos contos de fadas tradicionais existem elementos bons e maus que fazem parte da complexa vida humana. Por isso, as crianças se identificam facilmente com os personagens e conseguem elaborar conteúdos que elas não compreendem, mas que provocam conflitos e sofrimentos internos. 

Aproveito para dizer que é uma grande bobagem modificar os contos, de modo que apresentem apenas os aspectos positivos da vida. Fazer isso torna a história bonitinha, porém falsa e, consequentemente, sem nenhum poder de transformação, porque não se pode enganar a psique. Na mente do ser humano há de tudo; o feio, o belo, o amor, o ódio, o medo, a coragem, a falsidade, a sinceridade, etc. 

Durante minha experiência, digamos assim, familiar, pude observar a veracidade do que diz a psicanálise acerca dos contos de fadas. Além disso, descobri que não é qualquer conto que provoca um efeito observável na criança e que, para que esse efeito se dê, é necessário um método. Quem me ensinou um método que se mostrou eficiente foi meu neto, sujeito espontâneo de minha experiência fortuita.

Ele era uma criança medrosa, incapaz de se defender; se outra criança mesmo menor lhe tirasse o brinquedo, ele apenas se queixava e chorava. Nessa época tinha em torno de quatro anos e era completamente dominado pela irmã, um ano mais nova. Quando estávamos juntos, antes de dormir os dois pediam que lhes contasse histórias. Certa noite, contei a história de Chapeuzinho Vermelho, meu neto ficou muito atento e pediu que a repetisse, tive de repeti-la até ele dormir. A partir desse dia, durante alguns anos, mantivemos esse procedimento; eu contava a história de Chapeuzinho até que ele dormisse. Algumas vezes, insistia em que eu cantasse a música de Chapeuzinho e ele cantava a do lobo mau. Notem isso: uma criança incapaz de brigar, de se defender, identificou-se com o lobo mau. Minha mente de psicóloga logo fez uma interpretação, mas isso não importa. O importante é que, após algum tempo, este menino começou a fazer uso da agressividade como toda a criança saudável, aprendeu a se defender e não mais se submetia às ordens da irmã.

Este episódio permitiu que eu observasse na prática que os contos de fadas são de grande valia na infância e que o conto que sensibilizar a criança pode promover a cura de seus conflitos íntimos, contanto que o adulto use o método de repetir enquanto lhe for pedido.

A percepção desse mesmo poder nos romances ocorreu algum tempo depois. Estava aparentemente bem comigo mesma, quando resolvi ler Grande Sertão – Veredas. No final da leitura, senti uma dor tão dilacerante no peito que eu não parava de chorar. Não entendia por que chorava, só chorava. Sem saber o que fazer, peguei o livro e voltei a ler. No final senti novamente a dor embora menos intensa. Segui o método do meu neto e li repetidas vezes; chegava ao final, imediatamente voltava a ler. Parei apenas quando a dor desapareceu completamente.

Haviam-se passado vários meses, quando me surpreendi enfrentando uma situação em que me senti impotente, mas daquela vez não gritei com os responsáveis, como sempre fazia. Pelo contrário, exigi meus direitos educadamente. Compreendi. A repetição da leitura libertara-me do que estava por trás de minha conduta anterior, que viera à tona diante da cena em que “vi” Riobaldo impotente diante de Diadorim já morta. (Riobaldo e Diadorim são personagens do romance Grande Sertão Veredas, de João Guimarães Rosa). 

Morgana Gazel



Nota: Esta experiência certamente foi o pilar em que me sustentei ao tomar a decisão de escrever histórias fictícias que contribuam para a transformação íntima dos leitores. E assim nasceram os romances ENSEADA DO SEGREDO e LIBERDADE NEGADA. Veja a capa de ambos na coluna à sua direita.